Sunday, November 28, 2010

O Condenado à Morte (Jean Genet)


O vento que rola um coração no pátio dos recreios, um anjo que soluça preso numa árvore, o pilar de céu que o mármore retorce, abrem portas de emergência à minha noite.

Um nobre pássaro que agoniza e o travo da cinza, a memória de um olho adormecido na parede e este doloroso punho que ameaça o firmamento, descem-me o teu rosto à palma da mão.

Mais duro e leve que uma máscara, o teu rosto tem na minha mão mais peso que a jóia em dedos de um receptador quando a mete ao bolso; está afogado em pranto. É sombrio e feroz, coberto por um elmo de folhagem verde.

Tens o rosto severo: és um pastor grego. Sempre a fremir dentro das mãos que fechei. Com uma boca de morta onde os olhos são rosas e no nariz há o bico, talvez de um arcanjo.

O gelo cintilante de pudor maldoso que polvilhava o teu cabelo com um aço de astros claros, e te coroava a testa com espinheiros do canavial, que mal sagrado sabe desfazê-lo se o teu rosto canta?

Diz-me que desgosto doido te faz explodir nos olhos esse desespero tão forte que uma dor bravia e desvairada aparece, apesar do gelo que choras, a enfeitar-te a boca redonda com um sorriso sem luto?

Esta noite não cantes aos “Latagões da Lua”. Mais vale, ó garoto de ouro, seres princesa pensativa de uma torre, a sonhar com o nosso pobre amor; ou aquele grumete loiro que vigia no cesto da gávea,

Que à noite entre marinheiros em cabelos caídos de joelhos, desce para cantar na ponte a “Ave Maris Stella”; todos a agarrar no membro que salta, já entre mãos de larápio.

E para te penetrarem, ó grumete da aventura, é que se entesoam por baixo das calças os potentes marinheiros. Meu amor, meu amor, não vais tu roubar-me as chaves que saibam abrir o céu onde estremecem mastros

De onde semeais, real, magias tão brancas; essas neves que vêm cair-me na página, nesta prisão minha que emudeceu: o terror, os mortos em flores de violeta, a morte com o cantar dos seus galos! Os seus fantasmas de amantes!

Com pés de veludo que passa a rondar um guarda. Nos meus olhos profundos dorme a memória de ti. Talvez nos seja possível fugir pelo telhado. Dizem que a Guiana é terra de muitos calores.

Oh que suavidade o cárcere impossível e distante! Oh que céu nessa formosa, oh que mar e que palmeiras, as manhãs transparentes, as tardes loucas, as noites calmas, oh as cabeças rapadas e as Peles-de-Cetim.

Vamos sonhar juntos, Amor, um rude amante qualquer, tão vasto como o Universo mas todo manchado de sombras. Que saiba conter-nos a nudez dentro de albergues sombrios entre coxas de ouro, no seu ventre a fumegar,

Esplendoroso chulo modelado num arcanjo em erecção, sob cravos e jasmins que as tuas mãos de luz transportam, a tremer, ao seu flanco transtornado com um beijo dos teus.

Na minha boca, a tristeza! Amargura que se desfaz, desfaz o meu coração! Adeus vão-se embora os meus amores perfumados! Adeus colhões que tanto amo! Adeus com esta voz embargada, ó minha tora insolente!

Não cantes mais, garoto, deixa em paz essa canção de apache! Sê menina de garganta pura e radiosa, ou se nada temes o menino musical que em mim morreu muito antes de o machado me tocar.

Menino de honor tão lindo coroado de lilases! Chega-te à minha cama, deixa que este membro a levantar-se vá bater à tua face dourada. Ouve, que ele fala contigo, do teu amante assassino, de gesta a brilhar em mil estilhaços.

Diz a cantar que tinha o tem corpo e o teu rosto, o teu coração que as esporas de um cavaleiro maciço nunca saberão abrir. Ter a perfeição dos teus joelhos! O teu pescoço ameno, a tua mão suave, ó miúdo ter a tua idade!

Roubar, roubar-te o céu salpicado de sangue e fazer uma obra-prima com todas as mortes colhidas ao sabor de campos e sebes, mortes fascinadas a preparar-lhe a morte, o céu adolescente...

As manhãs solenes, o rum, o cigarro… As sombras do tabaco, do cárcere e dos marinheiros vêm visitar-me a cela por onde me arrasta e estreita um espectro assassino com a braguilha cheia.

A canção que atravessa um mundo tenebroso é o grito de um rufia chegado com toda a música, é o canto de um enforcado que enrijeceu como um pau. É o apelo mágico de um ladrão que se apaixonou.

O adormecido com dezasseis anos atrai boinas que nenhum marinheiro lança ao adormecido que enlouqueceu. A criança dorme direita, colada à parede. O outro enrolado nas pernas que encolheu.

Matei pelos olhos azuis de um belo indiferente que nunca soube compreender o meu amor contido, desconhecida amante numa gândola preta, bela como um navio e morta a idolatrar-me.

E tu quando estiveres pronto, com arma feita ao crime e máscara de crueldade e elmo de cabelos loiros, ao ritmo doido e rápido de violinos estrangula a mulher rica apaixonada pelo palmo de cara que tens.

Na terra vai surgir um férreo cavaleiro impávido e cruel, visível apesar da hora no gesto impreciso de uma velha a desfazer-se em lágrimas. Sobretudo não tremas ao enfrentar-lhe o olhar claro.

É aparição que chega do terrível céu dos crimes do amor. Criança de abismos, do seu corpo hão-de nascer esplendores que espantam, do sem membro adorável nascerá um esperma perfumado.

Rocha de granito negro sobre tapete de lã, de mão na anca, a ouvir-lhe os passos. Marcha em direcção ao sol do seu corpo sem pecado; e tu dorme tranquilo ao pé da sua fonte.

Toda a festa do sangue nomeia um rapaz formoso que ampara a criança na primeira provação. Acalma o teu susto e essa angústia nova. Suga o meu membro duro como quem suga um gelado.

Sê meigo ao mordiscar a verga que te chega à face, beija-me a tora que inchou, enfia na garganta o troço deste malho que engoliste de repente. Sufoca-te de amor e vomita com o teu ar de nojo!

Adora o meu torso tatuado de joelhos, como um totem sagrado, adora até chorares o meu sexo que rebenta e melhor te fere do que uma arma, adora esta moca que vai penetrar-te.

Vê-a, como te assalta; e se enfia pela tua alma. Inclina a cabeça ao de leve e vê-a levantar-se. Ao dares com ela tão nobre e propícia ao beijo, fazes uma grande vénia e dizes: “Senhora!”

Ouvi-me, Senhora! Morre-se aqui, Senhora! A mansão está assombrada! A prisão voa e estremece! Estamos a ir, quem acode!... Neste nosso quarto, Senhora das Graças, levai-nos ao céu!

Chamais o sol, e que ele venha ter comigo e consolar-me. Estrangulai todos os galos! Adormecei o carrasco! O dia faz um mau sorriso atrás da janela. A prisão para morrermos é uma triste escola.

O meu pescoço sem armadura nem ódio, pescoço que a minha mão mais leve e grave do que uma viúva aflora sob o colarinho sem poder tirar-te o gelo ao coração, deixa os teus dentes pousarem o sorriso de lobo.

Oh vem, formoso sol, oh vem, minha noite de Espanha, entra nos meus olhos que amanhã vou morrer. Entra, abre a minha porta, dá cá a mão para me levares ao nosso deus-dará.

Podem acordar os céus, florir as estrelas, mesmo que as flores suspirem e prados de erva negra recolham esse orvalho onde a manhã bebe, pode o campanário dobrar porque só eu vou morrer.

Oh vem, meu céu de rosa, meu açafate loiro! Vem visitar na tua noite o teu condenado à morte. Desfaz-te em sangue, mata, assalta, morde, mas vem! Encosta a tua face á esfera rapada da minha cabeça.

Nem tudo estava dito sobre o nosso amor. Nem estavam fumados os nossos gitanes. Como pode condenar-se em tribunal tão belo assassino, capaz de empalidecer o dia?

Vem à minha boca, amor! Abre as tuas portas, amor! Corredores fora desce, corre, mais ágil do que um pastor voa a escada, mais sustido pelo ar do que um voo de folhas secas.

Transpõe paredes; se for preciso anda à beira de telhados, dos oceanos; cobre-te de luz, ameaça, recorre à súplica mas vem, minha fragata, uma hora antes de eu morrer.

Os assassinos da parede rodeiam-nos de aurora na minha cela aberta a este canto de pinheiros altos que a embala, presa por cordames finos, amarrada por marujos que a manhã clara dourou.

Quem fez no estuque aquela Roda-dos-Ventos? Quem sonhou com a minha casa do fundo da sua Hungria? Que criança preguiçou na minha palha podre ao toque da alvorada e a lembrar-se de amigos?

Divaga, minha Loucura, concebe para minha alegria um consolador inferno cheio de soldados belos com torso nu, e às calças cor-de-rosa extrai aquelas flores pesadas com um cheiro que me deixa fulminado.

Arranca sei lá de onde os gestos mais loucos. Rouba crianças, inventa torturas, mutila a Beleza, trabalha as faces, e oferece a Guiana à malta como lugar de encontro.

Ó meu velho Maroni! Ó suave Caiena! Vejo quinze ou vinte ratoneiros de corpo inclinado para o miúdo loiro a fumar beatas que os guardas cuspiram sobre flores e musgo.


Uma prisca molhada chega para nos deslocar a todos solitariamente erguido acima de talos duros, o mais novo senta-se em leves ancas, imóvel e à espera de uma sagração de esposo.

E em aperto para cumprir o rito, agachados na noite os velhos assassinos extraem de um pau escuro a centelha de fogo que rouba, activo, aquele rapazinho puro e mavioso, mais mavioso do que a maviosa verga.

O bandido mais duro, de músculos polidos, todo se curva de respeito ao franzino miúdo. A Lua sobe ao céu. Acalma-se uma querela. Mexem-se as dobras negras de mistério na bandeira negra.

Como és envolto, tão fino, pelos teus gestos de renda! De ombro encostado à palmeira ao rubro, fumas. Desce-te o fumo na garganta enquanto os forçados, em dança solene,

graves, em silêncio e um de cada vez, vão extrair-te à boca, meu menino, a gota perfumada; uma só gota e não duas do fumo redondo que a tua língua oferece. Ó triunfante camarada,

terrível, invisível e maldosa divindade! Continuas impávido e cortante, de claro metal, só a ti próprio atento, fatal distribuidor arrebatado nas malhas da rede suspensa que está a cantar.

Tens a delicada alma para além dos montes, a acompanhar na fuga mágica um evadido do cárcere que morreu com uma bala nos pulmões no fundo de um vale, sem pensar em ti.

Sobe, meu lindo, pelo ar da lua. Pinga-me na boca, meu Amor, um pouco desse esperma grosso que escorres da garganta e me chega aos dentes para nos fecundar adoráveis núpcias.

Cola o maravilhado corpo contra o meu, morto que ele anda por enrabar o mais suave e meigo dos patifes. E enquanto apalpo, seduzido, os teus loiros colhões, o mármore preto desta verga vai chegar-te ao coração.

Vê como ela se levanta do ocaso em fogo que vai consumir-me! Já não tenho muito tempo; se és corajoso vem, sai dos teus pântanos, dos teus mangues, da lama onde fazes rebentaras tuas bolhas.

Almas de quem me foi assassinado! Matai-me! Queimai-me! Como um extenuado Miguel Ângelo esculpi a vida; mas a beleza, Senhor, sempre a servi com o ventre, os joelhos, as mãoss rosadas de alarme.

Os galos da capoeira, a gaivota gaulesa, as latas do leiteiro, um sino no ar, um passo no cascalho, a janela branca e luminosa, são o luzente alegre da prisão de ardósia.

Senhores, não tenho medo! Caísse-me a cabeça na serradura do cesto onde estivesse, meu querido, o teu rosto branco, e para mais sorte na tua graciosa anca ou, para maior beleza, no teu pescoço…

Cuidado, rei de tragédia com a boca entreaberta! Que eu vou chegar aos teus ermos jardins onde estás muito direito, entesoado e só, dois dedos erguido, cabeça coberta por um fino véu de algodão azul.

Por um delírio idiota vejo o mais perfeito dos teus duplos! Amor! Canção! Minha rainha! Um espectro-macho será o que vislumbro fora deste jogo, na pupila clara com que me examinas do estuque da parede.

Deixa esse rigor, deixa a tua alma cigana entoar matinas; concede-me um beijo, que seja… Meu Deus, ainda me vou desta sem poder apertar-te, uma vez na vida, de encontro ao coração e à piça!

Meu Deus perdoa-me, porque pequei! As lágrimas da voz, a febre, o sofrimento, a dor que é voar das belas Terras de França não bastam, Senhor meu, para me deitar trôpego de esperança

nos teus braços perfumados, nos teus castelos de neve! Senhor dos sítios escuros, ainda sei rezar. Fui eu, meu pai, que gritou um dia: Glória no mais alto ao deus que me protege, Hermes de macio pé!

À morte peço a paz, os prolongados sonos, o canto dos serafins com perfumes e grinaldas, anjinhos de lã com samarras quentes, e espero noites sem luas nem sóis, em campos imóveis.

Não será esta manhã que me guilhotinam. Posso dormir tranquilo. No andar de cima, o meu querido preguiçoso, a minha pérola, o meu Jesus, acorda. Vai bater-me com a botina dura na cabeça rapada.

Parece que ao lado vive um epiléptico. De susto, a prisão não prega olho na treva de um canto fúnebre, se marinheiros no mar vêem avançar os portos. Os meus dormidores vão fugir para outra América.

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