Monday, May 14, 2007

depois de ter saído de casa J. apercebeu-se que as chaves tinham ficado em cima da cómoda. isso era crítico, logo hoje que estava atrasado para o trabalho... teria de arranjar uma solução o mais depressa que pudesse. teria de ligar à empregada que vinha hoje e perguntar-lhe se poderia vir mais cedo. telefonaria também para o seu patrão a avisar do atraso. a empregada não viria e ele não conseguiria chegar ao trabalho. amanhã por esta mesma hora estaria a levantar-se para não fazer nada mais que esperar o tempo passar.
"há cinco anos que me sinto completamente sozinho... há cinco anos que não visito os meus amigos e por eles fora esquecido... há mais tempo ainda... oh... há quanto tempo... não tomo eu um copo com os meus amigos."
a verdade é que ele bem sabia que não valeria a pena ressentir-se com isso, ele seria sempre o mesmo, ele não conseguiria voltar a renascer, por muito que isso fosse bom e prometesse. há muito que se acomodara e não esperava que o ajudassem a ter de novo a vida alegre que tinha nessa altura.
a verdade é que os tempos mudaram e o momento das borgas tinha passado e nada mais restava que fazer o que fosse possível para arranjar dinheiro e sobreviver mais um pouco neste mundo cruel.
a verdade é que os seus amigos se fartaram de o convidar para sair quando ele dizia que não tinha dinheiro para tomar copos ou que não se sentia bem por lhe pagarem sempre as noites de bebedeira pelas quais passava.
a verdade é que era um adulto, assim como todos os seus amigos e tinham famílias a sustentar. ele não, nunca se afeiçoara a ninguém o suficiente para que isso acontecesse e arranjara-se como pudera, sozinho como sempre se sentira.
a verdade é que tinha preguiça em procurar velhos contactos. e já nem a promessa de bom sexo o motivava a sair de casa para um filme ou uma saída, por mais rápida que fosse que o desviasse do seu caminho: trabalho-casa, casa-trabalho. era por essa razão que as reuniões de trabalho eram para ele um motivo de preocupação.

neste dia não valia a pena apressar-se para chegar a horas ao trabalho, pois nunca chegaria a horas... hoje não valia a pena... porque é que tinha feito aquele telefonema ao seu chefe, se sabia perfeitamente que não conseguiria chegar da parte da manhã ao gabinete onde ocupava os seus dias. nesse dia de que lhe valia...
"pensando bem não tenho vivido nada... que tenho eu feito que não seja ir para o trabalho e fazer o que me compete. não tenho perspectivas de subir, mas também não tenho de descer, sou bem visto, mas ao mesmo tempo não tenho perfil para dirigir pessoas..."
J. não sabia o que fazer da vida nem o que pensar... era daquelas pessoas que se camufla no meio de toda a gente e que tem um pouco de toda a gente e não tem nada de ninguém... um incógnito... passava por milhares de pessoas por dia mas sempre que olhava para elas lhe pareciam distantes, inatingíveis. desejava misturar-se com elas... ser parte da sua vida e não apenas uns meros pontos na história desta cidade. nem no trabalho olhavam para ele como uma pessoa, apenas como um empregado e, nem mesmo a secretária do seu gabinete, que bem feia era, lhe convidara para um café na esquina mais próxima. os seus chefes olhavam para ele como qualquer chefe olha para o mais insignificante dos seus empregados. os seus colegas de gabinete passavam por ele como se nem se apercebessem de que ele existia para além dos limites do gabinete. neta cidade tudo lhe era estranho... desejava alguma cor... nem que essa cor fosse o breu. desejava uma pequena constipação, não para falhar no trabalho, que era o mais preciso possível, mas para que fossem dias diferentes. depois punha-se a pensar... "mas quem pode cuidar de mim que não tenho ninguém que se lembre de que existo?" a altura do ano que mais o aborrecia era o mês de agosto, altura que passava o tempo à espera que o tempo passasse para ele voltar a fazer a viagem para o trabalho. nessas alturas ele inventava que viajava por aquela cidade em que morava e trabalhava. passava pelas ruas que percorria e que conhecia todas as pedras e ladrilhos... demorava precisamente o mesmo tempo a percorrê-las em pensamento que demorava a percorrer na realidade, pois nada mais sabia do mundo que os seus dias nesse vai-vem eterno de casa para o trabalho e vice-versa. hoje olhava para ar e encontrava pássaros que o saudavam como uma pessoa que conheciam de longa data mas que ele não lhe tinha ligado nada. as árvores estendiam as suas folhas para que ele pudesse passar por cima delas e os raios de sol brilhavam como se pretendessem aumentar-lhe o esplendor. e ele olhava tudo isso agora que não podia voltar a casa nem podia ir para o trabalho. andou um pouco mais e descobriu que se estendia no seu caminho para o trabalho um pequeno jardim com árvores e bancos relaxantes. era tudo o que precisava agora. sentia-se um pouco cansado pois percorria um caminho que não conhecia, mesmo que esse caminho fosse o mesmo caminho para o trabalho, o caminho que conhecia tão bem, mas a preocupação das chaves deixara-lhe espaço para fazer maluqueiras.
J. senta-se no banco do jardim e nesse preciso instante é bombardeado com caca de pombo. olha para o casaco sujo e nem se preocupa com isso... a verdade é que o mundo não o perturbava agora... o seu fascínio por tudo aquilo era grande demais para toda a vida que o rodeava. o seu telemóvel tocava insistentemente do trabalho e já alguém no seu gabinete pensara que alguma coisa de mal lhe acontecera... mas não havia nada de mais... deixou-se ficar, largou o telemóvel e manteve-se estático no banco de jardim.
J. nem sabia porque é que não tinha ido para o trabalho na mesmo e ligara à empregada a dizer que deixasse lá a chave. ela bem que o poderia fazer... assim ele estaria naquele momento a trabalhar... mas se assim fosse ele não estaria maravilhado com o mundo à sua volta e não haveria história pois seria um dia igual a tantos outros. restar-nos-ia apenas dizer que ele fora para o trabalho onde preenchera vários papéis e assinara uns quantos de documentos e passara declarações até à hora marcada, altura em que largava o trabalho e vinha para casa. em vez disso deixou-se ficar a olhar para tudo o que acontecia no parque; para as árvores, para os pássaros, para as crianças, para os idosos, para toda a gente que passava, marcando cada uma como se fora um documento único para guardar para a posteridade. cada rosto era único, cada olhar era uma completa ficha de identidade. o andar de cada pessoa explicava mais algo da sua vida, como se fosse necessário registar todos os detalhes para um crime que ocorrera. a um dado momento nada mais fez que deixar-se ficar quieto, sem olhar, com a vida a escoar-se.
J. nunca soubera como o mundo cruel poderia também ser perigoso e esse esquecimento fizera-o baixar armas num local perigoso. os jornais do dia seguinte iriam relatar a morte de uma pessoa nesse parque onde anda tanta gente. tudo para que alguém encontrasse alguns trocos para comprar droga... ele nunca trazia dinheiro e o carteirista não era experiente e preferia matar a roubar... "gostava de lhe ter dito que não trazia dinheiro na carteira... sempre poderia ficar mais um tempo a observar o parque e a descobrir mais coisas nele..."

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