Wednesday, October 14, 2009

Tristezas...

Tenho em minha casa uma rapariga que se mudou há coisa me mês e meio. Não sei grande coisa sobre a vida dela pois os nossos horários são um pouco incompatíveis. De olhos esverdeados com um sorriso encantador, ela se tem mostrado solícita quando lhe falo por sms em relação aos pagamentos e contas da casa. Raras são as vezes que nos cruzamos – penso que o facto de termos idades bem diferentes facilita o nosso recíproco afastamento um do outro.
Do pouco que sei da vida dela é que trabalha à noite num bar cinco noites por semana. Ganha para os seus gastos. É responsável a nível de contas. Não me tem dado chatices com namorados e coisas parecidas. Em resumo, poderia ser a rapariga ideal com quem me poderia casar.
O que vou contar é acerca desta mesma rapariga. Parte desta história tem a ver com coisas que notava em casa, a maior parte é invenção. Resta a vossas excelências imaginar o que é o quê.
Ontem regressava a casa e estava ela a chorar com a foto de um rapaz na mão. Os seus olhos pareciam cataratas e convertiam o coração mais endurecido. Eu, que raramente a via àquela hora, perguntei-lhe que se passava.
- Ontem o meu primo morreu.
- Os meus sentimentos. Eras muito ligada a ele?
- Sim.
Percebi que não queria falar muito. Uns dias mais tarde tentei perceber junto de uma amiga dela que também eu conhecia se ela percebera o que havia acontecido.
Ele não era só primo mas namorado. Os dois desde sempre andaram muito ligados e com os tempos a relação entre eles foi mudando de forma e assim que Raquel percebera que estava apaixonada outra coisa começava a acontecer: a puberdade. O crescimento dos seios e o escorrimento de sangue mensal começaram a afligi-la de tal forma deixou de querer continuar a ser uma rapariga. Cortou o cabelo contra a vontade dos pais, chorava por todos os cantos, gritava quando lhe queriam por a vestir saias ou a brincar com bonecas. Além de já não ser criança não era mais uma mulher. Não seria mais.
Lia, a minha colega de apartamento também começou a sentir algo por aquela rapariga e ao saber que ela não gostava de ser como era apoiou-a.
As duas fizeram promessas de eterno amor, acontecesse o que acontecesse. Os beijos que trocaram foram intensos demais para serem vistos pelos seus pais. Um mês depois Raquel começava os tratamentos para mudar de visual, mudar de voz, mudar tudo... as idas e vindas aos hospitais e as constantes marcações de exames e aconselhamentos psicológicos acabaram por degradar um pouco a relação já em si mesma tão perigosa. Lia começou a perceber que não conseguia de Raquel o tempo que ela queria.
Seguiram-se as discussões e as ameaças e as fragilidades de cada uma revelaram-se. Lia deixou de estudar e resolveu mudar de terra. Raquel há muito que tinha abandonado os livros pensava agora apenas em terminar a sua transformação para caminhar para a vida como um homem novo.
Foi nessa altura que Lia procurou casa e a achou comigo. Lembro-me que quando a vi achei que não estava emocionalmente muito bem e tentei falar com ela acerca disso. O problema era ela ser um pouco reservada e a minha curiosidade ficou-se por aqui.
Eu penso que Lia nunca conseguiu lidar muito bem com o seu afastamento da prima, desculpem, primo. A foto dele que arranjou foi dada por uma amiga de ambos que dera a Lia dizendo que o Sérgio (ex-Raquel) sentia a falta dela. O coração de Lia ainda estava a sarar as várias feridas que as passadas discussões haviam aberto e não respondeu, mas resolveu aceitar a fotografia.
Vários dias se passaram, meses... junto a uma ponte por onde Lia passava para ir para o trabalho cruza-se com um rapaz que a olha fixamente e ela olha-o de forma intensiva. Sem que soubessem, ambos os primos tinham-se cruzado. O tempo modelara neles caras que os tornou irreconhecíveis um para o outro. Era como se fosse um estranho encantamento.
Para infelicidade de Lia, não haveriam de cruzar os seus caminhos naquela ponte outra vez.
Ela foi vivendo a sua vida de forma a que ninguém a perturbasse ou a fizesse cair e lembrar o passado. A verdade é que por vezes procuramos tão afincadamente fugir do nosso passado e ele espera e aguarda pacientemente pelo seu momento. Se Lia não havia curado as suas feridas a verdade é que as de Sérgio também não e no caso dele o seu efeito doi muito mais. Em certo dia ele entra em coma no hospital com um derrame. Passa vários dias acamado sem perceber onde está por viajar no seu sonho quase na fronteira com a morte. Ele apenas acorda para escrever as suas últimas palavras:
“Eu não sei mais o que procuro neste mundo. Parece que tudo o que começo a fazer se desfaz nas minhas mãos como a água que nelas não pára. O único amor que comecei e que será para sempre único começou e acabou e os meus dias que vão chegando ao fim impedem o recuperar. As lágrimas que chorámos os dois – pois sei que o fizeste – mudaram o nosso rosto, as nossas vidas.
A dor que sinto no peito é já antiga, é uma dor que estou habituado a tê-la e comigo a levar para a minha eternidade. As desculpas últimas não servem para corrigir os nossos erros. Que sirvam ao menos para ajudar a sarar...”
Dois dias depois morreria e alguém entregaria aquelas mesmas palavras a Lia. Nesse mesmo dia chegaria ela a casa banhada em lágrimas com o coração nas mãos e a culpa de ter ela morto o seu primo, se bem a conheço. Eu achei estranho ela aparecer em casa naquele dia e por isso lho perguntei; não imaginava que a resposta magoasse tanto como a ferida de um punhal. Um punhal que tinha trespassado a pele e feito uma ferida bem funda que ficou a remoer como um cancro que aniquila o nosso interior.
Somos por vezes estranhos vizinhos de uma dor que não pecebemos, que não sabemos falar mas que nos apetecia reconfortar... a nossa incapacidade de agir torna-se então soberana. Não sei se agi bem ou não. Apeteceu-me chorar mas não consegui. Apeteceu-me dizer-lhe algo mas não saía som da minha boca.

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