Thursday, August 23, 2007

Fantasmas (12 de Setembro de 2006)

as pálpebras abrem-se para recortar a visão do que vejo.
pessoas, coisas, carros, cidades...
miro fixamente o que de mim consegue ver
perdendo-me num instante nos fantasmas,
prestígio da nossa existência corpórea...

rio-me da estúpida sintaxe com que Platão me tenta impingir
interrogando-me qual de nós terá razão
sentamo-nos.
duas cadeiras prestam-se aos nossos serviços -
espero que fale.
nada do que me diz me interessa e amaldiçoo-o a ele e à sua caverna.
observo-o falar porque os meus ouvidos se fecharam
restando apenas na memória uma campainha de elevador
observo a sua boca mexer-se,
reparo que tem três dentes cariados.
súbita e inesperadamente levo com um banho de vinho do Porto sob a minha camisa branca
o empregado, envergonhadíssimo pede mil desculpas
irritado - ou dando ares disso - desnudo o meu tronco
peço que me mandem lavar a camisa
- apesar de tudo isto Platão não interrompeu o seu discurso um momento
sobre-me estômago para mudar de mesa;
o fantasma roga-me uma praga que acrescento ao meu livro negro.
tomo uma aspirina para me manter a depressão.
- Um café, por favor.
agora terei de esperar pelo menos uma hora pela minha camisa.
pobre dela, pensar que me custara os olhos da cara
vou aos toiletes e lavo a cara
os meus olhos não conseguem manter-se abertos e ainda tenho mais 45 minutos
banho o meu pescoço com uma onda de água fria
olho as minhas pálpebras notando o negro das olheiras
- Oh, tempo de ir!
pelos poros da minha pele irrompe tinta negra.
com as mãos procuro remover essa espécie de melaço
mas quanto mais removo, mais a tinta se compõe em desenhos negros
deixo-me ser revestido de tatuagens enquanto a cafeína toma efeito
as minhas unhas projectam-se para além da realidade
e o meu espírito projecta-se num outro eu
ele veste uma camisa branca lavada, engomada
os seus olhos estagnados de ódio e de vingança atiram-me para o canto da retrete
abre o fecho das calças e mija no chão
eu agonizo.
ergue-se ante mim com uma altivez de um Luís XIV
eu amargo a um canto como um mutilado Quasimodo
um ódio, uma raiva de ele não sair dali.
já no café vira uma mesa para o chão.

devoro o remorso de raiva de não ser ele
e no entanto é ele e eu ao mesmo tempo
ele já não está aqui
e eu sinto que fiquei doido no total
peço um copo de vermute
o meu corpo acumula suor na epiderme
os meus pêlos aconchegam-se de frio
sonho tomar um forte ácido para derreter a digestão
que me remoi as entranhas
reparo que Platão está ao lado de uma rapariga
nada lhe diz.
quem lhe fala é Napoleão
como anjo da guarda acompanha-a o sábio Platão.
esqueço o mundo que me detesta e peço mais vermute
vomito tudo o que tenho e chamo por Galileu.
peço-lhe que vá à N.A.S.A. e me construa um foguetão
diz-me não saber o que é.
berro por Elizabeth
a raínha, frígida como sempre, aparece mas nada me diz.
senta-se ao meu lado e jogamos uma bisca.
farto-me da coisa e chamo o Pitágoras
ele aparece com a minha camisa
- Finalmente vestido -
saio do café-

a intelectualidade dos escombros de certas cidades revolvem-me os olhos ja de si tão enevoados.

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