Sunday, July 24, 2011

Quadro com um anjo


O ser demoníaco que era anjo precipita-se do topo da catedral. A sua vontade primeira é suicidar-se. O seu primeiro desejo é o da morte. A sedutora morte.
Com a sua queda do céu ele ficou cheio de energia. Eu sem ela. Enquanto ele se levanta, eu me deito e encolho cheio de dores. Eu lhe dei a vida mortal. Eu lhe fui sua mãe, o progenitor de um demoníaco anjo que nasceu numa noite gelada.
Ele olha do alto da catedral para o longe chão. Sente uma vertigem. O seu corpo estremece. Não mais se lembra do anjo que era. Esqueceu tudo. Agora lhe ficou apenas uma maldade carnal.
O desejo da morte volta-lhe. Ele sente o seu chamamento. Talvez fosse a sua porta de saída. A lua descoberta e despida, as estrelas distantes são um chuveiro que lhe limpam a clara pele do anjo caído dos restos de sangue. Cobrem-no da prata da noite. Abençoam os actos que venha a fazer. Naquele instante, apenas um desejo de acção o envolve. E é apenas um.
A morte.
Os seus olhos claros abraçam a queda. São puxados por fios invisíveis como se fosse uma marioneta. o crânio inclina-se para baixo. Curva-se o pescoço. O peito também se inclina. Todo o pensamento está dirigido para baixo. Cai. Vai caíndo lentamente. As mãos afastam-se do corpo, colhem o invisível ar onde antes tanto ele lia. As pernas dobram-se ligeiramente.
Eu vejo-o cair. A imagem me perturba de tal modo que as minhas entranhas doem mais fortemente. Mais fraco estou. A cada minuto mais fraco. O seu suicídio é também a minha morte. Sinto vontade em gritar mas o som fica preso na minha garganta. as cordas vocais enchem-se de líquido. Tusso. Tusso sangue.
É a morte.
Os seus pés cor de prata esticam-se até às pontas. Eles lança, todo o corpo como uma mola.
É a morte. É o vazio.
Vácuo.
Sufoco.
Ouço o pulsar do resto do meu sangue na aorta. Não consigo gritar. Tudo se fecha. Tudo.
Mal consigo respirar.
Que é feito dele? Morreu?
Todo eu agonizo. Imagino-o cair em cada fracção de segundos. Vejo o corpo abandonar-se. Vejo o sangue no chão. Vejo-lhe a sua morte. E deixo de ver...

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